(...) O tempo se precipita como impetuosa torrente, levando consigo a humanidade e sufocando em seu bramido ensurdecedor os nossos pensamentos mais profundos. Contudo, este sábio estava sentado à parte, tranqüilamente firme na margem gramada, e contemplava esse gigantesco espetáculo com o semblante iluminado por um calmo sorriso de Buda. O mundo quer que seus grandes homens pautem suas vidas por seu padrão mesquinho. Mas ainda não se inventou um padrão para medir-lhes a altura, pois tais homens, se merecem realmente esse nome,não derivam de si mesmo a sua grandeza, mas de uma outra fonte. E, essa fonte se estende até o Infinito. Alguns poucos, perdidos aqui e acolá, vivem ocultos nos diversos retiros da Ásia e África, mantendo, quais espectros, as tradições da mais antiga sabedoria. São como espíritos guardiães velando por seus tesouros. Essa raça espectral vive apartada, mantendo vivos os divinos segredos que a vida e o destino confiaram ao seu cuidado.
A hora do nosso primeiro encontro ficou gravada em minha alma e ainda persiste na memória. Encontrei-o inesperadamente. Não esboçou nenhuma apresentação formal. Por um instante seus olhos sibilinos mergulharam nos meus. Foi o suficiente para ele ver todo o itinerário pecaminoso do meu passado e as flores imaculadas que tenham começado a desabrochar em minha alma. Naquele ser, sentado à minha frente, estava uma grande força impessoal, que lia todas as etapas da minha vida num olhar mais lúcido do que eu jamais poderia alcançar.
Eu tinha dormido no leito perfumado de Afrodite – e ele o sabia; eu tinha atraído o gênio da minha mente a explorar as profundezas da alma em busca de estranhas e fascinantes descobertas – e ele também o sabia. Senti igualmente que se pudesse segui-lo pelos misteriosos labirintos do seu pensamento, todas minhas misérias se esvaneceriam, todos ressentimentos se transformariam em indulgência, e compreenderia enfim a vida sem jamais revoltar-me contra ela. Ainda que sua sabedoria não fosse dessas que se percebem facilmente ou se opõem, a apesar da reserva austera que o envolvia, ele me inspirou profundo interesse.
Rompia seu silêncio costumeiro apenas para responder às perguntas de ordem abstrata, tais como a natureza da alma, o mistério de Deus, os poderes estranhos ainda inexplorados mas latentes no homem, e assim por diante. Mas quando falava, eu sentia estar cativo de um encanto escutando sua voz doce, imobilizado sob o sol ardente ou pálida lua crescente. Pois aquela voz calma estava investida de autoridade e a inspiração cintilava em seus olhos luminosos. Cada sentença que seu lábio pronunciava parecia conter algum precioso fragmento de verdade essencial. Os teólogos de um século insuficientemente arejado pregaram a doutrina do pecado original do homem; mas este sábio ensinava a doutrina da bondade original no homem.
Em presença desse ser excepcional sentia-se segurança e paz interior. Sua irradiação espiritual penetrava no âmago da alma. Em sua pessoa aprendi a considerar as verdades sublimes que ele ensinava, e a incrível atmosfera de santidade que o envolvia me levava a prosternar-me em veneração silenciosa. Possuía uma personalidade deífica, que desafia qualquer descrição. Poderia eu ter tomado notas estenografadas das palavras do Sábio, e mesmo escrevê-las, mas o elemento mais importante das suas revelações, o perfume sereno e sutil de espiritualidade que dele irradiava, jamais podem ser relatados. Portanto, se hoje queimo um pouco de incenso literário diante da sua efígie, é apenas ínfima parcela do tributo que lhe estou devendo.
É impossível esquecer aquele semblante, aquele sorriso maravilhoso e profundo que revelava sabedoria e paz conquistadas pelos sofrimentos e experiências vividos. Era o ser humano mais compreensivo que jamais me fora dado conhecer. Sempre se podia ter certeza de ouvir dele algumas palavras que esclareciam o caminho e sempre elas correspondiam ao que o nosso mais intimo sentimento nos havia sussurrado.
E, no entanto, nos momentos de solidão sua fisionomia tinha uma expressão de profunda melancolia, porém, era uma melancolia serena de renúncia e não essa tristeza amarga e revoltada que se vê freqüentemente. Adivinhava-se que aquele homem, em algum momento da sua vida, devia ter sofrido atrozmente...
As palavras desse Sábio brilham ainda em minha memória como luz de um holofote. (...)
(...) Nossos mais eminentes filósofos ocidentais estão muito longe de chegar a seus pés.
Contudo, veio a inevitável hora da separação; o tempo passava e eu devia voltar. (...)
(...) Quase toda a minha tralha estava empacotada, meus últimos papeis estavam sendo postos em dia e pouco me restava para partir. (...)
(...) Esse dia foi marcado pelo Destino, quando me refugiei por algumas horas no parque verde para gozar ali da companhia das árvores amigas . atravessando colinas barrentas, amplos prados e num bosque próximo de faias silenciosas encontrei minhas árvores. Sentei-me na grama e cerrei os olhos, sentindo um bem-estar tão grande após o barulho estridente e confuso da cidade. Não se ouvia nada. Uma quietude beatífica da Natureza insensivelmente me penetrava.
Contudo, arrastado por um velho habito apanhei no bolso uma caderneta de notas bastante usada e fiquei na expectativa, com a caneta na mão, procurando captar o vôo tênue dos pensamentos e belos sonhos que nos passam pela mente quando tudo está em paz. No silêncio dessa solidão bucólica me achava mas à vontade do que no luxuoso salão e, em companhia das faias de tronco prateados, senti uma presença mais sincera e mais bela do que a dos seres humanos.
Era uma amena tarde de outono; o chão em volta de mim estava juncado de folhas vermelhas e douradas, caídas em massa nessa época do ano. O sol obliquo inundava a paisagem em sua luz profunda. As horas passavam insensivelmente; o suave zunido dos insetos levantava-se em intervalos para logo esvanecer-se no espaço.
(...) Neste elemento espiritual jazem todas as fragrantes esperanças do homem. Aguardando, tal qual tantas flores ainda não colhidas, as mãos delicadas que as juntarão para algum desconhecido. Nesses momentos sagrados, aquele que escreve se Põe em contato com o Infinito; as frases parecem formar-se por si só, não se sabe bem como; que se desprendem do céu para aterrar em nosso mundo sublunar e alimentar a mente. Devemos entregar-nos a essas musas misteriosas e não oferecer-lhes resistência. Assim nos tornamos um digno mediador entre os deuses imortais e o homem instável e fraco.
Hoje, porém, pensei esperar em vão, fechei o livro guardei minha caneta no bolso. Muito logo, a turva hora do crepúsculo escureceria a face do tempo e os passos silenciosos da noite se insinuariam pelas arcadas do dia. Então, para regressar à cidade, me levantaria do tronco caído, no qual estivera ponderando tristemente e em vão, e, em passos lentos, às apalpadelas, atravessarei os prados sombrios e o bosque que as folhas mortas haviam coberto como de um tapete castanho.
De chofre, tive uma impressão estranha de suspensão de vida; uma névoa estendeu-se diante dos meus olhos, cobrindo-os e tornando-os insensíveis ao ambiente que me rodeava. Ao invés de sangue, uma corrente ígnea parecia-me fluir impetuosamente nas veias e brilhar uma luz dourada dentro do meu coração. Uma mão me parecia tocar o ombro; ergui a cabeça e vi um rosto cheio de doçura inclinar sobre mim. O Sábio que eu tinha conhecido no Oriente apareceu diante de mim; seu grave rosto barbudo tão claro, tão reconhecível como se fosse de carne. Certamente ele se aproximou de mim com passos silenciosos como a queda do orvalho... Com a devota humildade do meu coração, que o venerava, cumprimentei-o e nos seus olhos enigmáticos e luminosos percebi uma expressão de censura.
Fixando-me, falou com sua voz meiga: “Meu filho, isso não está bem. Esqueceste a compaixão? Pretendes partir para aumentar teu cabedal de conhecimentos enquanto outros estão famintos por migalhas de sabedoria? Queres comungar com os Divinos Seres quando ainda há homens que procuram Deus, mas só percebem a barreira intransponível do céu; quando há os que lançam preces num vácuo de que não lhes vem nenhuma resposta. Firma teus pés, se necessário, mas não te esqueças de teus irmãos na miséria. Não partas para as terras das palmeiras ondulantes enquanto não houveres meditado bem nestas palavras. Que a paz esteja sempre contigo. E, de súbito, sem nada mais dizer, desapareceu de minha visão, tão silenciosa e misteriosamente como havia parecido.
Quando retomei consciência do que me cercava, vi apenas árvores, pois havia escurecido; a luz do dia havia-se apagado e as estrelas cintilantes começavam a surgir no céu.
(...) Levantei-me para retomar o caminho de casa. Enquanto os pés se afundavam na grama e folhas caídas, com a bengala tremendo em mão e os pensamentos fixos na augusta admoestação, compreendi logo que a sua repreensão era perfeitamente justa. Sim, eu só havia pensado em mim! Eu havia seguido a luz da estrela da Verdade, a estrela que mais me atraia em todo o firmamento, mas a havia seguido apenas para mim mesmo.
(...) Voltei à cidade... Aqui milhões de seres a quem as exigências da sociedade impõem suas leis, que os obrigam a deitar-se ao comando do relógio e levantar-se ao estrondo de um despertador agressivo.
Sim... é verdade, festejei sozinho o banquete, saboreando realidades eternas. Será que minha alma não vai se empobrecer, murchar, se eu não partilhar com todos os que têm fome daquilo que me foi dado com tanta liberalidade, o dom recebido do silêncio do céu? Poderei rejubilar-me em paz, guardando só para mim essas verdades? Quem sabe se, entre as numerosas almas do universo, algumas delas talvez receberão com fervor as idéias que lhes posso transmitir?
O mundo exterior não tem muita simpatia com aqueles que se isolam na torre de marfim e mantêm a sua alma livre para contemplar visões às quais não podem ter acesso. E o mundo tem razão. Nós, videntes e místicos, temos de extrair a ultima gota da fonte cristalina da visão inspirada, porém, aqui começa o nosso dever, severo e estrito, de oferecer esta bebida pouco usada ao primeiro viajante sedento que queira aceitá-la.
(...) Se é muito grande privilégio de sentar-se aos pés dos esquecidos, mas sem dúvida poderosos deuses, o dever de divulgar sua mensagem ao mundo desatento, mas sofredor, é tão elevado quanto nobre. Talvez não exista ser humano com mente tão encerrada na fealdade que uns tênues raios de beleza interna não o possam importunar de vez em quando e fazê-lo levantar um pouco a cabeça para as estrelas, ora perplexo antes o significado de tudo isso, ora maravilhado ante a incessante harmonia das esferas.
“Não te esqueças de teus irmãos na miséria”, disse-me o estranho visitante. Que poderia então fazer? Não poderia demorar muito neste país ocidental e deixar de realizar minha expedição transasiática, que minha inclinação natural e o capricho do destino me havia facilitado. De que forma, por amor aos meus semelhantes, poderia alguém tomar o manto de profeta e espalhar o que aprendera da verdade? A resposta me veio clara, nítida, sob a forma de um pensamento intuitivo. Eu proporia algumas das coisas que a vida me havia ensinado e deixaria para depois os trabalhos escritos. Não poderia fazer mais do que despertar o interesse de meus contemporâneos a apresentar-lhes algumas idéias que me haviam sido úteis, e depois retirar-me, deixando-as cumprir sua missão.
Eu não poderia indagar em seu nome; quem as aceitasse espontaneamente receberia sem duvida um auxílio , também, e quem as rejeitasse teria de buscar em outra parte seu alimento espiritual. Se meu escrito satisfizesse apenas um homem no momento crucial da sua existência, quem saberia até onde esse escrito poderia guiá-lo para o eterno Bem?
Tentarei pôr em palavras escritas minha sabedoria ganha pela experiência dolorosa da vida, sentenças que conservam o cerne dos dias gastos em amarguras, e da pena fluirão frases que embalsamarão lágrimas que então derramei. Escreverei na esperança de que essa leitura levará cura e consolação àqueles que a angústia e o desespero abatem, para lhes demonstrar e fazê-los sentir que o homem possui por si mesmo reservas de forças insuspeitas graças às quais pode enfrentar e vencer, por mais duras que sejam as provas de que ninguém escapa.
(...) Nessas páginas poder-se-ão notar poucas argumentações,embora seu conteúdo possua bastantes elementos suscetíveis de provocá-las. O sentido será claro para aqueles que penetrarem o mistério da parábola do Cristo: “Em verdade vos digo que enquanto não vos tornardes simples como uma criança, não entrareis no reino do céu”, mas de difícil compreensão aos intelectuais, aos espíritos esmiuçadores e aos egocêntricos. O intelecto é apenas uma máquina; ele se torna um servo excelente, porém um mau senhor.
Temos tendência a criticar o que não compreendemos. No entanto, se alguma coisa parecer difícil de entender ou obscura na sua forma, aconselho ao leitor parar um pouco e meditar até descobrir o sentido oculto do escrito.
Se eu lograr impulsioná-lo à descoberta do verdadeiro sentido seu, então lhe terei prestado um serviço bem mais valioso do que inculcar ensinamentos teóricos. Vivemos numa época em que se lê apenas para matar o tempo; alguns espíritos amadurecidos procuram, todavia, fazer do seu tempo algo de valor. Meus votos são de que este livro lhes chegue às mãos.
Fazer cruzada para defender minhas idéias não me apraz, e toda agitação é para mim uma tortura; prefiro ser um estímulo, despertar os demais e não levá-los a aderir a algum credo; antes a pensar por si próprios, e mais profundamente do que os homens convencionais da nossa época.
(...) Não escrevi este livro para quem já fechou as persianas da mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe a sua sonolência. Escrevi para os poucos que, no meio da confusão das doutrinas perturbadoras, querem entrar na terra firme da experiência por não verem outro caminho mais seguro a tomar. (...)
(...) O fato de escrever sobre estados de consciência muito raros, que para a maioria das pessoas podem parecer fantasia, para mim é verdadeira Ciência. Os que receberem essa mensagem com este estado de espírito, verão finalmente sua fé recompensada e chegar o tempo em que seu credo lhes será confirmado por um conhecimento de primeira mão. (...)
(...) Creio, no entanto que, se encontrei a vida espiritual mais substancial do que a vida material, o mesmo pode ocorrer a todo leitor deste livro. Não gozo de nenhum privilégio especial, que outros não possam igualmente gozar e não afirmo ter recebido um favor que não seja obtido mediante contínuos esforços. O que encontrei dentro de mim é exatamente aquilo que qualquer um de nós, até o mais endurecido dos “gangsters” de Chicago, também pode descobrir no mais íntimo de si mesmo. (...)
(...) Deus escreve Sua mensagem na face do nosso redondo planeta, mas o homem cego é incapaz de ler essa mensagem. Uns poucos, tendo visa, a interpretam para os outros. Contudo, a massa humana ri cinicamente dos seus esforços e só os poucos intuitivos entre os espíritos cultos e inteligentes e algumas almas singelas entre os operários e camponeses, recebem essa mensagem e a retribuem na afeição aos mensageiros. Não se deve estranhar portanto que a historia contemporânea seja uma longa seqüência de tragédias e lágrimas; aliás a historia completa da humanidade não é uma tragédia nem uma comedia: não cai nenhuma cortina nem há nenhum fim.
Sim, a humanidade parece padecer de cegueira e surdez espirituais. Incapaz de ler as palavras místicas escritas na parede deste mundo, fechando os ouvidos aos poucos que podem enxergá-las, atravessamos nossos dias apalpando e tropeçando. As advertências e sábios conselhos são rejeitados num gesto de gabolice pelos incrédulos, feridos no seu amor-próprio como os judeus quando se recusaram a aceitar as Verdades incisivas proferidas pela boca do Cristo. O resultado é que os homens correm desesperadamente para cá e para acolá sem saber aonde vão no meio do caos desvairado do mundo hodierno. Levantamo-nos do berço natal e agarramos-nos apaixonadamente à vida para logo após desaparecer na fria indiferença do túmulo.
Nossas pequenas personalidades estão totalmente absorvidas com a importância das nossas lutas e aspirações ou vitórias e derrotas. Somos escravos dos nossos bens materiais e nos apoquentamos e afligimos por causa deles. Não podemos evitá-los, pois somos humanos.
Trechos extraídos do livro:
O Caminho Secreto
Paul Brunton – páginas. 9 a 19 e 23.
Editora Pensamento
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